9 de julho de 2012

Violência doméstica

Lembram-se um dia eu "dizer" que um dia eu falava sobre um assunto delicado...pois é... chegou o dia.
Vou meter este assunto para trás das costas, mas preciso de deixar o meu testemunho enquanto filha de vítima de violência doméstica.

Durante os primeiros 17 anos da minha vida assisti a uma coisa que infelizmente é mais frequente do que devia e que afecta gente de todas as classes económicas, religiões, nacionalidades, etc.....
A violência doméstica.
Durante a infância pensei que era uma coisa normal, aliás não pensava... aquela era a minha realidade, e apesar de ser horrível não fazia ideia de que era diferente nos outros lares.
Quando comecei a escola primária e comecei a frequentar a casa das minhas amigas via que na casa delas não parecia ser assim.
A minha mãe sempre me disse que não podia dizer nada a ninguém....que era uma vergonha.
Desde cedo tinha medo...andava sempre com medo... medo de quando ele ia chegar a casa, se vinha bem disposto... se vinha mal disposto... se vinha alcoolizado ou vinha bem....se alguém lhe tivesse dito algo que ele não tivesse gostado era a minha mãe que ia levar...
Foi este inferno durante 17 anos.... os últimos 2 ou 3 anos foram consideravelmente piores.
Eu pedia por favor para parar... mas eu era transparente.. invisível nestes momentos e em muitos outros.
Eu tinha medo de ir à escola.... quando voltava o meu estômago dava voltas com o medo de como ia encontrar a minha mãe assim que chegasse a casa.
Eu tinha medo de quando de noite ele finalmente voltava para casa e eu ouvia o barulho do carro a chegar.... se viesse muito acelerado eu já sabia....
Nos últimos tempos deixou de ser segredo para algumas pessoas da família e infelizmente até 2 amigas minhas assistiram ao mau feitio e ataques de fúria e violência dele.
Eu fazia tudo em função de não haver problemas em casa... porque se eu tivesse uma visita de estudo e lhe perguntasse se podia ir ele dizia para ir perguntar à minha mãe... e se a minha mãe dissesse que sim e não adivinhasse se que ele afinal não queria que eu fosse... já se sabe o resultado...
O mesmo acontecia em caso de eu querer sair à noite.
Escolhi o meu curso da secundária em função do que achava que eles gostariam mais para não haver problemas em casa e convenci-me de que era o melhor.
Vivi 17 anos da minha vida a ver o meu pai bater na minha mãe, maltratá-la verbal e psicológicamente.
A mim nunca me tocou, mas mais valia tê-lo feito... assim sabia que pelo menos me via. Porque eu pedi tantas vezes para ele parar por favor... e sempre fui ignorada... sempre vi a minha mãe levar e calada... ou a pedir por favor para parar.
Passados 17 anos uma noite em que vi a coisa muito mal mesmo... pedi ajuda. Tinha juntado dinheiro para um telemóvel e ele foi a nossa salvação naquela noite, porque nunca tinha havido uma noite tão má.
Ele partiu a mesinha de vidro da sala e dizia que acabava com a vida da minha mãe. Nessa noite tive tanto medo que pedi ajuda a um tio. Ele foi... e nesse dia tudo mudou. Pode-se dizer que a violência física acabou.
Fugimos para Lisboa (morávamos no Algarve) nessa noite, com pouco ou quase nada... deixei escola, amigos, os meus animais de estimação : ( e tudo o resto para trás... eu e a minha mãe.
Fomos para o desconhecido longe da família.
 Junto de quem nos acolheu tivemos apoio nos tempos seguintes, nova escola, novo trabalho, muitos telefonemas com ameaças, tribunal... etc.
Passada alguns meses ou talvez cerca de 1 ano a coisa acalmou.
Ir ao Algarve era um inferno porque tinha um medo terrível que ele nos visse pois cada vez que ligava dizia-me que se apanhasse a matava.
Passados uns anos voltamos a encontrar-nos no funeral do meu avô e nem sei que custou mais, se a morte do meu avô se o facto de ter reencontrar o meu pai.
Fez o meu marido prometer que me levaria lá para o ver mais vezes e assim foi. Nasceu o meu filho mais velho e ele ficou muito feliz mesmo. Nasceu o meu segundo e consegui enviar-lhe umas fotos e quando faltava menos de 1 semana para irmos ao Algarve para ele o ver o pior aconteceu... o meu pai faleceu... levantou-se do sofá e caiu no chão... e acabou tudo.
Foi um grande balde de água fria.... gelada... um verdadeiro iceberg...
Gostava muito dele apesar de tudo... não o perdoei nem nunca vou perdoar... mas custou-me muito mesmo, porque apesar de todo o mal que nos fez era meu pai... no seu pior, mas era.
Com isto veio o que a psicóloga chamou de descompressão.
Levei quase 10 anos a sonhar TODAS (acreditem todas mesmo) as noites com ele.. a fugir dele, a esconder a minha mãe dele... fiz a minha vida em torno de dele, do medo que tinha dele... até casei em segredo escondido dele, cheia de medo de que ele descobrisse tudo e fosse armar confusão... e quando tudo acaba fiquei sem saber quem sou, o que sou...
Enfim... já passaram 3 anos desde a morte dele e continuo a sofrer as consequências dos 17 anos iniciais e mais os quase 10 de inferno interior com medo que ele se lembrasse de um dia ir apanhar a minha mãe de surpresa porque ele sempre ameaçou que um dia era o dia.
Finalmente procurei ajuda e vou superar isto... vou vou.

Tudo isto (muito resumido) para dizer que sim a violência doméstica existe (cheguei a ter uma colega de escola já em Lisboa que um dia lá me conseguiu arrancar a razão de eu andar sempre a falar com a psicóloga da escola e a resposta foi "estás a brincar, essas coisas só existem nos filmes") e as vítimas sofrem muito, escondem... são incompreendidas e vá-se lá entender porque raio aturam aquilo e deixam os filhos passarem por isso e não os defendem.... e normalmente só se faladas vítimas directas e esquecem-se de falar dos filhos das vítimas e agressores... os que assistem a tudo.
Falo nessa qualidade mesmo por isso.
Se alguém que, eventualmente, leia isto e que esteja a ser vítima de violência e tiver filhos.... por favor saiam dessa vida...por eles... por favor.
Já ouvi e li sobre alguns casos em que as mães dizem que não fugiram porque assim os filhos iam crescer sem o pai... e a questão é.... eeeeee?????????? melhor sem o pai violento do que com viver nesse ambiente de constante medo, que é completamente devastador para uma criança.
Se não o fazem por vocês por favor façam-nos pelos vossos filhos, estão melhores longe da violência mesmo que isso signifique fugir... ter uma vida nova, uma região nova, uma casa nova, ter menos dinheiro... etc .
Façam-no por vocês e pelos vossos filhos, salvem-nos dessa vida.

Vou encerrar este capítulo da minha vida e queria deixar este resumido testemunho.
Vou trabalhar para ultrapassar os meus medos e todas as consequências do inferno que vivemos.
Chega de sofrer de ataques de ansiedade, ataques de pânico e outras coisas que me limitam a vida diariamente.


Um video que encontrei sobre o assunto:


 http://mais.uol.com.br/view/99at89ajv6h1/filhos-tambem-sao-vitimas-da-violencia-domestica-0402183566C4C993A6?types=A



11 comentários:

  1. Fico feliz que tenhas conseguido partilhar com o mundo! Espero que escrever a carta te tenha trazido algum alívio interior!
    Beijinho grande!

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    1. Olá!
      Trouxe sim, ontem a psico ajudou-me muito ao ler a carta de despedida ao meu pai que tive de escrever, foi duro ouvir ela ler a carta em voz alta, mas ajudou.
      bjs

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  2. Nunca vi a minha mãe apanhar! Tenho um pai... espetacular! Mas senti na pele (tu sabes, muitas sabem). Um dia também falo sobre isso! Beijinho grande!

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    1. Não fazes ideia das vezes que me lembro dessa tua fase... só me apetecia pegar em ti e esconder-te :( tirar-te daquilo assim num piscar de olhos :(
      Mas tu és uma mulher muito forte e não permitiste que isso continuasse, admiro-te muito por isso. Tomara que todas tivessem essa coragem. por elas e pelos filhos.
      Beijo grande

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  3. Miel arrepiei-me com as tuas palavras, mas acredito que vais ultrepassar e ainda bem q procuraste ajuda, esse é um passo fundamental. Beijinho grande abraço cheio de força

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  4. Fico tão feliz por teres decidido tentar ultrapassar e encerrar o assunto.
    Foi uma decisão tua e pareces cheia de garra, espero em breve ler-te cada vez mais leve e feliz.
    Um beijinho grande

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  5. Minha querida...o teu testemunho vai te trazer também alguma paz...és uma pessoa fabulosa e cada vez vais ter mais energia e determinação para te ergueres do medo! Um beijinho muito grande e um abraço muito apertado!

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  6. Eu também acredito que vais conseguir ultrapassar isso.
    Pode levar ainda algum tempo, mas hás-de ser capaz de olhar para trás e, de alguma forma, sentir-te leve
    Parece que essa ajuda vai-te fazer mesmo bem
    Um abraço apertadinho

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  7. O 1º passo foi dado, o conseguires falar/escrever sobre o problema, foi um bom sinal. A vida foi madrasta mas em compensação agora tens uma família linda, agarra-te a isso. Abraço forte.MJ

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  8. Pois amiga fizeste bem em desabafar e abrir o teu coração.
    Fechou-me um ciclo e começa outro em que vais deixar de te culpabilizar!
    Fizeste o melhor que foi fugir e fazer pela tua vida.
    Desejo que sejas bem feliz: Beijinhos e tudo de bom

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Obrigada pelo teu comentário, até breve :)